Recentemente tenho ouvido com muito frequência: meu filho é hiperativo. Ouço isso tanto em situações cotidianas quanto em meu consultório e, mesmo não sendo especialista, vejo que muitas vezes esse diagnóstico parece não se encaixar. Uma grande amiga minha, que é ótima psiquiatra infantil e excelente mãe, escreveu este texto esclarecedor sobre o transtorno de déficit de atenção.
"Apesar de ser conhecido na literatura médica há pelo menos um
século, o transtorno de déficit de atenção/hiperatividade (TDAH) ainda é alvo
de controvérsias. Para complicar, o acesso a informações tendenciosas
circulantes na mídia contribuem para confundir ainda mais os pacientes ou pais
que buscam algum esclarecimento sobre o tema.
As opiniões
geralmente se polarizam entre as visões científica e sociológica, tanto no meio
acadêmico médico e psicológico quanto em outros segmentos da sociedade, como a
educação e a mídia em geral. Infelizmente, posições partidárias e dicotomizadas
apenas emperram o diálogo e as possibilidades de desenvolvimento de práticas e
saberes sobre o tema, pois obviamente o sofrimento humano não pode ser
dividido, a grosso modo, de acordo com suas origens “biológica” e “psicológica”.
Por um lado
observamos uma tendência em considerar o TDAH como uma “doença”, decorrente de
alterações biológicas na fisiologia cerebral, e portanto, sujeitas a abordagem
medicamentosa. Entretanto, também observamos a existência de posições no
extremo oposto, de que o TDAH “é uma invenção da indústria farmacêutica para
vender remédios” ou que o transtorno é uma forma de medicalização de
comportamentos “culturalmente inaceitáveis”. É bom tomar cuidado com posições
extremas.
É certo que o
tema aponta uma condição de sofrimento, com sintomas que, dependendo da
intensidade, do contexto e do prejuízo imposto sobre o funcionamento global do
indivíduo, pode indicar uma condição clínica. E se essa pessoa que sofre pode
sim se beneficiar de uma associação de tratamentos que podem ou não incluir o
uso de medicamentos, a abordagem psicoterapêutica ou psicopedagógica ou
orientação aos pais da criança ou adolescente. Entretanto, é necessário
destacar que a avaliação deve ser realizada de forma muito cuidadosa por
profissionais experientes, respeitando-se as características individuais do
paciente e de seu contexto social e familiar.
A linha divisória
entre a normalidade e o TDAH tem sido traçada de forma diferente em culturas
diferentes, de acordo com instrumentos diagnósticos muito diferentes. Por
exemplo, nos Estados Unidos, onde predomina o sistema DSM os pesquisadores
Visser e Lesesne relataram que 7,8% das
crianças americanas entre 4 e 17 anos apresentaram diagnóstico de TDAH. No
Reino Unido, por sua vez, a prevalência é de 1% a 3% ( tanto para o sistema
DSM-IV quanto CID-10), sendo que os britânicos tradicionalmente usam critérios
muito rigorosos para hiperatividade, que enquanto transtorno grave afeta por
volta de 0.1% de suas crianças. E na França, onde os psiquiatras infantis
utilizam outro sistema diagnóstico, a percentagem de crianças
diagnosticadas e medicadas para o TDAH é inferior a 0,5%. Estes diferentes
percentuais mostram que uma abordagem padronizada desta questão está longe,
senão impossível...
As principais
características apresentadas são agitação, desatenção e impulsividade marcantes.
É comum o relato de que a criança não para quieta, não presta atenção às aulas,
tem dificuldade em persistir em qualquer tarefa, troca de atividade
frequentemente e distraem-se facilmente, envolvem-se em confusões e brigas. Em
muitos casos os pais ou a escola se queixam de que a criança é “mal-criada”,
“mal-educada”, “respondona”, “só faz o que quer”, “não obedece”, não aceita
regras”, etc...
Uma questão
fundamental relativa ao diagnóstico e que ele deve ser pensado e discutido com
calma e muito cuidado, pois muitas vezes pode gerar angústia ou até
expectativas irreais nos pais. É importante compreender o contexto em que estas
queixas ocorrem, dentro de uma compreensão clínica mais ampla da criança, de
sua história social, escolar e familiar. Caso contrário corre-se o risco de um
diagnóstico indevido ou mesmo de um plano terapêutico limitado a intervenções
voltadas apenas para a criança, enquanto única “responsável” pelas alterações
de comportamento. É imprescindível que um olhar atento a cada caso possa
identificar se a presença de tais queixas apresenta-se de forma invasiva e
qualitativamente prejudicial ao bom desenvolvimento da criança. Outra questão é
que uma criança com comportamento mais exuberante pode
ser muito desgastante para pais e professores, o que exige uma avaliação
cuidadosa de forma a evitar um rótulo diagnóstico precipitado.
A medicação é um
recurso disponível mas é necessário saber como e em que situações ela deve ser
usada. Algumas vezes a dificuldade no controle da atenção é tão grave que é
interessante poder usar a medicação como uma das ferramentas, mas não como a
única. Afinal de contas, a medicação pode em alguns casos amenizar uma situação
crítica, mas ela não vai “criar” habilidades ou novas atitudes diretamente e
que sejam duradouras. É necessário levar em consideração que em muitos casos a
criança apresenta dificuldades em se auto-regular em função de regras e limites
característicos de cada situação, habilidade que é construída muito
gradativamente, ao longo dos anos de seu desenvolvimento, sempre a partir da
mediação de situações de impasse ou conflito por uma segunda pessoa mais madura
ou com mais recursos psíquicos para ajudar a criança a lidar com frustrações do
cotidiano. Afinal, limites claros e aplicados de forma coerente, fazem as
crianças se sentirem seguras e protegidas. Apesar da palavra “não” trazer
frustração à criança (e muitas vezes mexer com sentimentos de culpa dos pais), é
necessária ao estabelecimento de limites internos, que por sua vez possibilitam que a criança seja resgatada da
tirania de seus próprios desejos.
Este trabalho de
mediação está sempre implícito na relação entre pais e filhos durante qualquer
interação ou entre professor e aluno no cotidiano da sala de aula, ou até mesmo
entre colegas e parentes. E é a partir deste somatório de experiências que a
criança “aprende” a se comportar ou incorpora, inconscientemente, valores ou
atitudes que determinam sua postura diante das diversas situações sociais. Mas tomemos cuidados com a simplificação das
coisas, pois é claro que também devemos levar em consideração a combinação
complexa de uma diversidade de situações, como por exemplo, a presença de dificuldades
emocionais da criança ou de seus cuidadores, a possibilidade de uma dinâmica
familiar conturbada ou até mesmo dificuldades do sistema educacional em lidar
com diferenças individuais. Ou seja, o problema da capacidade de dirigir a atenção e se organizar em função de
prioridades e objetivos exige também o recurso de adiar a satisfação e suportar
frustrações, possibilitando o controle dos impulsos e a modulação do
comportamento em função de situações diferentes. Se a criança ou o adulto tem algumas
destas dificuldades e por isso apresenta sofrimento considerável, é possível
que esta seja reconhecida como uma entidade clínica sim, mas o entendimento e
discernimento cuidadoso da situação é muito importante, tanto para descartar
rótulos diagnósticos indevidos quanto para adequar a abordagem às
características e necessidades de cada pessoa".
Por Iolanda de Salles F. Carvalho (Psiquiatra)
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